O futebol no Boxing Day, que é como quem diz no dia a seguir ao Natal, é tido como uma coisa muito inglesa. E, pelo menos em Inglaterra, onde há cada vez mais estrangeiros a jogar, é alvo de cada vez mais queixas, de gente que atribui às televisões e à exigência que elas põem no calendário a culpa de não poder fazer férias de Natal. Mas a história é bem mais intrincada. Nem o futebol em tempo de Natal é, historicamente, um exclusivo inglês, nem a culpa é das televisões. Aliás, tempos houve em que não se jogava só a 26 de Dezembro – o programa competitivo estendia-se por todos os dias desta quadra festiva, com algumas equipas a jogarem mesmo em dias consecutivos. Por uma razão muito simples: era quando os adeptos podiam ir ver e, como tal, os clubes aproveitavam para fazer receitas na venda de bilhetes.

O ano de 2020 é especial, devido à necessidade de comprimir o calendário provocada pela pandemia, que levou a época a começar mais tarde. Por isso, na Europa, o fim-de-semana de 25 e 26 de Dezembro vai ter jogos de muitos campeonatos que tradicionalmente estariam de férias até ao Ano Novo – é o caso em Portugal, que tem uma jornada marcada para os dias entre 27 e 29 de Dezembro. Mas, tal como aqui, por essa Europa fora quase ninguém joga a 26, que é sábado, optando antes por fazer do domingo, 27, o dia forte da jornada. Não é assim em Inglaterra, que a 26 terá seis jogos da Premier League, onze do Championship, bem como programas bem preenchidos das divisões mais abaixo. Na Europa, o Boxing Day terá ainda cinco partidas do campeonato belga, duas da Liga turca – que tradicionalmente, até por não ser um país cristão, joga sempre no dia 25 –, duas de Gales e jornadas completas na Escócia e na Irlanda do Norte. Trata-se, portanto, de uma tradição que, hoje em dia, se restringe ao Reino Unido e aos belgas, que imitam os britânicos desde 2008, ainda que com calendário menos preenchido. Em Itália, a Série A fez uma experiência com uma jornada no Boxing Day de 2018, mas abandonou a ideia ao fim de um ano.

Boxing Day
O Atalanta-Juventus (2-2) foi um dos jogos do Boxing Day “experimental” na Série A, em 2018

O que pouca gente sabe – ou recorda – é que a raiz deste fenómeno não é exclusivamente britânica. Ela é, aliás, fácil de explicar, com razões sociológicas. Pensemos na sociedade do início do século passado. Acham que o Natal era a altura em que as famílias se reuniam em casa e por lá passavam horas intermináveis, sempre à mesa, alternando entre momentos a comer e outros a trocar presentes? Que as pessoas deixavam as cidades em busca das origens, rumando ao interior do país, às aldeias, reunindo-se a familiares que a vida tinha levado para outras cidades? Claro que não. Não havia condições para isso nem as casas eram confortáveis como são hoje. Antes da instituição da semana de cinco dias e 40 horas de trabalho, o Natal era um feriado que as pessoas passavam, em grande parte, na rua, porque em casa o conforto não era extraordinário. E para muitos humildes trabalhadores esta era das poucas alturas em que conseguiam ir ao futebol. Ou ao circo. Ou ao teatro. Ou a uma performance de rua. Ou a qualquer espetáculo comunal.

Daí que o futebol tenha aproveitado para fazer jogos neste feriado. Comecemos pelo Reino Unido, porque foi lá que nasceu o futebol – e, como já vimos, é lá que a tradição ainda se mantém. Na era Vitoriana, “o futebol era jogado no dia de Natal, porque era um dia em que não se trabalhava e havia uma tradição de organização de eventos públicos para a classe trabalhadora”, explicou à BBC o historiador Martin Johnes, autor do livro “Christmas and the British”. A relevância do Boxing Day foi permitida pela legislação que, em 1871, estabeleceu como feriados a segunda-feira de Páscoa, a segunda-feira após o Pentecostes, a primeira segunda-feira de Agosto e o dia após o Natal. O futebol estava a começar a popularizar-se por esses tempos e estes dias de Dezembro foram desde sempre datas cheias no calendário. “Por vezes, as equipas jogavam a 25 e a 26, fazendo dois jogos em dias consecutivos”, explica ainda Johnes. Foi o que aconteceu, por exemplo, em 1913: o Liverpool FC ganhou por 4-2 em casa ao Manchester City no dia 25, perdeu com o City em Manchester no dia 26 (0-1) e empatou em casa com o Blackburn Rovers (3-3) no dia 27.

Foi quando os lares se tornaram mais confortáveis, as condições financeiras da generalidade das famílias melhoraram e a crescente mobilidade passou a permitir que as pessoas saíssem dos grandes centros industriais em direção às terras de origem que o Natal passou a ser uma festa celebrada em casa, com a família. E que o futebol passou a transitar para o Boxing Day. Não se joga no dia de Natal em Inglaterra desde 1965, quando o Blackburn Rovers ganhou ao Blackpool FC por 1-0, em partida da antiga I Divisão. Os escoceses mantiveram a tradição natalícia por mais uns anos – acabaram-na apenas em 1976, com um Clydebank-St. Mirren, no dia 25. Mas o que era bem mais próprio do campeonato escocês nesta época festiva era a realização do Old Firm, o derby entre o Celtic e o Rangers, sempre a 1 de Janeiro – tradição que também acabou em 1998.

E em Portugal? Ainda não será este ano que teremos outra vez futebol no Boxing Day. Aliás, há 38 anos que isso não sucede na Liga portuguesa – e na última vez que sucedeu foi com um jogo tresmalhado, antecipado de uma jornada que estava marcada para 2 de Janeiro, mas que os dois clubes decidiram realizar mais cedo, para poderem gozar a passagem de ano sem limitações. Foi em 1982 que a nossa I Divisão teve, pela última vez, um jogo a 26 de Dezembro, que nesse ano calhou a um domingo. E foi um derby, um Varzim-Rio Ave, que os varzinistas ganharam por 2-1, com golos de Valdemar e André – o que depois foi internacional pelo FC Porto e é pai de André André, que hoje alinha pelo Vitória SC. Pelos vila-condenses marcou N’Habola. Mas para encontrar uma jornada marcada de origem para 26 de Dezembro há que recuar ainda mais, até 1971. No campeonato de 1971/72, a 13ª jornada estava agendada para esse dia, mais uma vez um domingo, e ainda que o Belenenses-CUF tenha sido antecipado para a quarta-feira anterior e o Benfica-Vitória SC também se tenha realizado na quinta-feira, dia 23, de forma a permitir um Natal mais tranquilo às equipas, os outros seis jogos decorreram mesmo a 26 de Dezembro. Em Setúbal houve um Vitória FC-FC Porto, que os sadinos venceram por 2-0 (bis de José Torres), mantendo-se firmes na perseguição ao Benfica, que era líder. Um hat-trick de Yazalde (o primeiro que fez em Portugal) permitiu ao Sporting ganhar fora ao Tirsense (5-3) e ampliar a vantagem sobre a CUF no terceiro lugar da tabela classificativa.

E se em 1967 houve jornada completa na véspera de Natal – foi a última vez que se jogou a 24 de Dezembro, sendo que nesse ano se realizou também uma ronda inteira a 31, no dia da passagem de ano – é preciso recuar muito mais para se encontrar um jogo de campeonato no dia de Natal. Foi em 1945 que, a 25 de Dezembro, o FC Porto ganhou na Constituição ao Atlético por 11-0 (leram bem foram onze golos, cinco dos quais da autoria de Correia Dias) em jogo que tinha ficado adiado da terceira jornada, toda ela jogada a 23. O dia de Natal, no entanto, não deixou de ser data para eventos públicos logo ali. Em 1950, a 25 de Dezembro, realizou-se a festa de despedida do guarda-redes Azevedo, com um Sporting-Real Valladolid e um Benfica-Estoril. E antes disso esta era a data predileta para muitos jogos particulares, sobretudo integrados em digressões de equipas sul-americanas ou húngaras pela Europa Ocidental. O Natal era uma coisa diferente. E o futebol também.

Texto da autoria de António Tadeia