Vi mais, estive em mais, mas há, basicamente, três jogos entre França e Portugal na minha vida. Um, inevitável, é o da final do Europeu de 2016, porque estava lá, no Stade de France, no momento em que Éder chutou do meio da rua para dar à seleção o primeiro grande título internacional e acabar com uma malapata que já tinha mais de 40 anos. Outro, igualmente inesquecível, é o de Abel Xavier, o de Bruxelas, porque também estava lá e aquele momento correspondeu ao fim do sonho daquela que continuo a achar a melhor equipa de Portugal que alguma vez vi jogar, a de 2000. Mas aquele que mais me marcou, porque ficou assinalado por muitos anos de insucessos, foi o de 1984, que vi num televisor portátil, num parque de campismo da Costa de Caparica. E ainda hoje me parece incrível que o tenhamos perdido ou que tenha sido um Domergue qualquer a fazer as vezes de craques como eram Platini, Giresse ou Tigana.
Ao todo, as duas seleções enfrentaram-se por 25 vezes, com 18 vitórias francesas, seis de Portugal e só um empate. Que não tenha sido desfeito, quero dizer, porque dois dos jogos de que já falei acima acabaram empatados e só foram resolvidos no prolongamento. O primeiro confronto data de 1926, jogou-se em Toulouse, e os franceses ganharam por 4-2. Nessa altura, ainda sem um programa oficial de jogos internacionais, as seleções geograficamente próximas encontravam-se todos os anos e foi assim que, no Lumiar, Portugal ganhou aos franceses por 4-0 em 1927 e as duas equipas empataram no Parque dos Príncipes em 1928. A primeira vitória fora de casa obteve-a a França, por 4-2, no Jamor, em 1947, com hat-trick de um tal Ernest Vaast, um extremo-esquerdo que era a estrela do Racing Paris e que ficou na história do futebol gaulês por ter sido o primeiro a marcar em Wembley. Eram tempos de supremacia francesa: foram cinco vitórias seguidas, de 1947 a 1959, interrompidas em 1973, na primeira vez que Eusébio defrontou a seleção do galo. E o Pantera Negra bisou, ajudando Portugal a impor-se pela primeira vez em território francês. Como pode ver na transmissão integral, disponível aqui (primeira parte) e aqui (segunda), os comandados de José Augusto, que um ano antes tinham feito uma bela MiniCopa, no Brasil, ganharam por 2-1. Eusébio marcou o primeiro de penalti e fez o segundo numa cabeçada em mergulho, após um centro de Simões que Artur Jorge não alcançou. Foi a primeira vez que Portugal jogou em Paris com muito apoio nas bancadas: o narrador francês fala em pelo menos 20 mil portugueses a apoiar a equipa nacional.
O exemplo de 1973 perdurou e Portugal voltou a ganhar em França dois anos depois, a 26 de Abril de 1975, por 2-0, num jogo que também pode ver aqui. No Estádio de Colombes, Nené e Marinho marcaram os golos de uma seleção já liderada por José Maria Pedroto, fazendo crer em qualificações para as fases finais do Europeu de 1976 e do Mundial de 1978 que nunca chegariam. A França, sim, estaria na Argentina em 1978, onde já deixou antever que vinham aí boas novas. Antes da partida para o Mundial, os franceses receberam os portugueses em Paris e ganharam por 2-0. Não houve Platini, poupado nesse dia, mas já deu para ver Bossis, Giresse, Six ou Battiston, entre os que viriam a ser campeões europeus de 1984. O jogo está disponível aqui e o Portugal de Juca mostrou aos franceses o futebol de João Alves, que o Paris Saint-Germain contrataria um ano depois. Antes do jogo de 1984, o tal de que falava no início, ainda houve uma espécie de ensaio. Foi em Fevereiro de 1983, quando a seleção de Otto Glória estava prestes a desmoronar-se, que os franceses vieram a Guimarães mostrar que estavam a levar a sério a preparação para o Europeu que iam organizar no ano seguinte. Ferreri e Stopyra (este por duas vezes) marcaram os golos de um 3-0 que deixou Portugal em depressão – e pode ver o jogo aqui. A equipa francesa já era, em grande parte, a que viria a ganhar o Europeu de 1984, mas em Portugal também já estavam vários dos Patrícios – assim se chamaram os jogadores chamados depois para a saga em França. A questão é que aos 3-0 que apanhámos da França seguiram-se os 5-0 da URSS e uns 4-0 do Brasil, levando à saída do selecionador e à entrada da comissão técnica que acabou por apurar Portugal para o Europeu de 1984.
O confronto de Marselha, foi, portanto, o primeiro verdadeiramente competitivo. A França planara num dos grupos do Europeu, batendo a Dinamarca (1-0), a Bélgica (5-0) e a Jugoslávia (3-2). Nos três jogos, Platini fizera sete golos. Portugal sofrera mais para se apurar, com dois empates (0-0 com a RFA e 1-1 com a Espanha) e uma vitória de 1-0 frente à Roménia, como que a mascarar as más relações entre os jogadores do Benfica e os do FC Porto. Havia poucas dúvidas quanto ao favoritismo francês e nem em Portugal se via grande esperança numa equipa que ofensivamente parecia sempre curta, apesar do contributo de um genial Chalana.
Pode ver aqui, num resumo do jogo, como o lateral esquerdo Domergue (que fazia naquele dia 27 anos) colocou a França na frente, num livre onde toda a gente – incluindo Bento – esperava um remate de Platini. A história do jogo, depois, é uma história de desperdício dos franceses, que podiam ter dois ou três golos de vantagem no momento em que, com um nível de eficácia notável, Jordão aproveitou um cruzamento de Chalana para fazer o empate e levar o jogo para prolongamento. Só porque, antes do final dos 90’, Bento voltou a fazer um par de milagres. No prolongamento, um remate estranho de Jordão deu a vantagem a Portugal, mas a França agravou o fatalismo lusitano com dois golos: Domergue, aos 114’, e Platini, aos 119’. Ainda recordo o som das buzinas no Velodrome e os jogadores portugueses por terra. Quem não passou pelos anos 70 e 80 não conseguirá compreender o que significava uma hipótese destas para uma geração que nunca tinha sequer estado numa fase final de um Mundial ou de um Europeu.
França e Portugal só voltaram a encontrar-se em 1996, no Parque dos Príncipes, para o que foi o meu primeiro duelo franco-lusitano ao vivo: lá estive, ao serviço do Público. Repetiu-se o resultado (3-2 para a França), sendo que Portugal esteve por duas vezes em vantagem e já aquecia os motores para o Europeu de Inglaterra, cuja qualificação tinha sido garantida meses antes. Pode ver aqui um resumo do jogo. E antes do jogo de 2000 houve ainda um particular, em Braga, em 1997, que os franceses ganharam por 2-0, como pode ver aqui. A França ia a caminho do título de campeã mundial, que acabou por conquistar em 1998, e Portugal da sua última ausência numa grande competição internacional. Até que chegou 2000 e a hipótese de vingar 1984. Portugal não ganhava à França há 25 anos, desde o tal jogo de Colombes, mas estava muito forte naquele Europeu, que acompanhei ao serviço do Record. A seleção de Humberto Coelho tinha ganho por 3-2 à Inglaterra, por 1-0 à Roménia e por 3-0 à Alemanha, antes de bater a Turquia por 2-0 e assegurar a segunda presença nas meias-finais da prova. O adversário era o mesmo da primeira: a França, que de caminho até perdera com a Holanda, por 3-2.
Nuno Gomes chegou a colocar a equipa de Portugal na frente e como, já na segunda parte, Henry empatou para os franceses. O jogo foi para prolongamento e ia ser decidido pela regra do Golo de Ouro – quem marcasse ganhava. E foi a três minutos do fim que Abel Xavier meteu a mão esquerda a um remate de Wiltord que já tinha passado Baía. Penalti, decretou o árbitro, o austríaco Gunther Benko, graças a uma indicação firme do auxiliar, o eslovaco Igor Sramka. Os portugueses perderam a cabeça, houve casos de mau comportamento, castigos, mas Zidane é que não esteve com meias medidas e fez o golo que levou a França à final.
A malapata continuava – e continuaria. Em 2001, como pode ver aqui, a França recebeu Portugal para um particular no Stade de France e ganhou com facilidade por 4-0. E em 2006 – este vi-o pela TV, porque nem trabalhava em desporto na altura – voltou a ocasião de bater a França numa meia final. Liderada por Luiz Felipe Scolari, a equipa portuguesa juntava já a juventude de Ronaldo à experiência de Figo. Tinha perdido a final do Europeu de 1984, em casa, com a Grécia, mas apostava tudo na conquista do Mundo. Pela frente, o rival maldito: a França de Zidane, Henry ou Vieira. E a história repetiu-se, como pode ver aqui, neste resumo alargado do jogo: desta vez foi Ricardo Carvalho quem derrubou Henry na área portuguesa, mas Zidane não falhou. Golo, 1-0 e a França a caminho da final do Mundial, enviando a equipa portuguesa para o desafio de consolação que era a atribuição do terceiro posto – e mesmo neste haveríamos de perder com a Alemanha.
Os três jogos que restam já são do consulado de Fernando Santos. Foi, aliás, a jogar contra a França que Santos se estreou à frente da seleção, ainda por cima em dia de aniversário. Os franceses estavam diretamente apurados para o Europeu de 2016, pois iam organizá-lo, e foram incluídos no grupo de Portugal, que era o mais curto da qualificação. Assim sendo, nas datas em que outros grupos jogavam pelo apuramento para a fase final, à vez, as seleções do grupo de Portugal encaixavam os particulares com a França. Portugal perdera por 1-0 com a Albânia na estreia, em Braga, o que, a somar a um Mundial de 2014 que desiludiu, chegou para a demissão de Paulo Berto, surgindo em seu lugar Fernando Santos. E, na estreia, ainda por cima em dia de aniversário do selecionador, veio a primeira derrota, um 2-1 cujos principais lances pode ver aqui e que até foi generoso para os portugueses. Já comentei esse jogo na RTP1, o mesmo sucedendo com o desafio de retribuição: mais uma derrota (0-1), em Alvalade, fruto de um golo de Valbuena, a cinco minutos do final, conforme pode ver aqui, neste resumo.
Estava, por isso, montado o palco para a final de 2016. O jogo era em Paris. Portugal não ganhava à França há 41 anos. Os franceses eram amplamente favoritos para repetir o título europeu. Até à final, levavam cinco vitórias e apenas um empate, contra a Suíça, ainda na fase de grupos. Portugal, por sua vez, empatara os três jogos da fase de grupos e depois só tinha ganho nos 90 minutos uma vez, a Gales, nas meias-finais. De resto, desembaraçara-se já no prolongamento da Croácia e nos penaltis da Polónia. Estive todo o dia no Stade de France, entre diretos para os vários canais da RTP. Acompanhei a saga das traças, tive a Taça à minha frente para o Jornal da Tarde – e não lhe toquei, para não dar azar – e comentei depois o jogo, ao lado do Manuel Fernandes Silva e do Rui Costa, com o apoio do Alexandre Santos e do Hugo Gilberto na pista. A seleção sofreu, perdeu Ronaldo muito cedo, mas foi-se aguentando até ao tiraço de Éder. No fim, Portugal prevaleceu e pôs fim à maldição, como pode ver aqui, neste resumo alargado. Não foi fácil sair do estádio no final. Tinha avião de regresso a Lisboa logo às oito da manhã e lembro-me de sair do hotel quando os últimos membros da equipa da RTP estavam a chegar. Já em casa, aproveitei o facto de a seleção ter feito um tour em autocarro aberto e de ter parado ali mesmo ao pé de minha casa, na Alameda D. Afonso Henriques, para poder vitoriar a equipa como adepto – algo que não pude naturalmente fazer a trabalhar.
Foi o último França-Portugal. As duas equipas voltam a defrontar-se no domingo e eu voltarei a comentar o jogo na RTP, só que desta vez em estúdio, porque a pandemia inibe as viagens. A emoção não é a mesma, mas pelo menos uma coisa é certa: a malapata acabou e as buzinas do Velodrome já não têm o mesmo peso na memória coletiva de quem vê a equipa de Portugal.
Texto da autoria de António Tadeia