José Mourinho já não é o jovem rebelde que tomou o futebol português de assalto quando João Vale e Azevedo se lembrou dele para assumir a equipa do Benfica, substituindo Jupp Heynckes, em Setembro de 2000. Na altura, o Zé tinha 37 anos e uma carreira de “filho de jogador”, complementada com estudos na área do futebol e uns anos na retaguarda de alguns dos treinadores mais influentes da Europa, como eram Bobby Robson ou Louis van Gaal, no Sporting, no FC Porto e no FC Barcelona. Mas, quando acaba de completar 58 anos e quase começa a ser um treinador idoso – só cinco dos outros 19 treinadores da Premier League são mais velhos do que ele –, Mourinho mantém a irreverência que o levou a protagonizar cenas invulgares um pouco por todo o lado por onde passou.

José Mourinho é filho de Mourinho Félix, antigo guarda-redes do Vitória FC e do Belenenses, que foi o primeiro a sofrer um golo de Eusébio em Portugal, mas também o primeiro a parar um penalti marcado pelo King: aconteceu em Junho de 1961 e os setubalenses ganharam na mesma, por 4-1, eliminando da Taça de Portugal o Benfica que um dia antes (e com outros jogadores) tinha ganho a Taça dos Campeões Europeus. O Zé ainda não tinha nascido nessa tarde. Apareceria ano e meio depois e durante muito tempo acompanhava o pai, que em 1974 pendurou as luvas e as chuteiras e em 1976 começou a carreira de treinador pelo Estrela de Portalegre. Aos 13 anos, o Zé já ia atrás do pai, até porque lhe nascia o bichinho de ser jogador. Foi apanha-bolas e pombo-correio, correia de transmissão do treinador para os seus jogadores, numa altura em que a presença no interior dos balneários lhe ensinou como eles funcionam.

O José Mourinho jogador teve uma frustração e uma tarde de glória. Em Vila do Conde, para onde acompanhou o pai – treinador – e foi jogador das reservas do Rio Ave, só foi uma vez ao banco em todo o campeonato: foi na visita ao Belenenses, onde acabara a formação e onde tinha sido júnior. Estava a uma semana de completar 19 anos. Semanas antes, logo a seguir ao Natal, tinha entrado para o lugar de Eusébio Patriota nos 12 minutos finais de um prolongamento que o Rio Ave tivera de disputar, na Taça de Portugal, contra o Salgueiros, antes de ganhar por 2-1. Mário Reis, que também haveria de dar treinador, acabara de fazer o resultado final, de livre, e o Zé Mário – assim era conhecido – entrou para dar frescura à equipa. Não voltaria a jogar ali. Esse dia, aliás, marcaria o fim da confiança entre o Mourinho-pai e o presidente do Rio Ave, José Maria Pinho, pois este, ao saber da intenção do treinador colocar o filho no onze inicial, terá descido ao balneário para o impedir. “Ou tira o seu filho do onze ou deixa de ser treinador do Rio Ave”, terá dito, indiferente ao facto de o técnico, até ali especialista em subidas de divisão, ter conduzido a equipa a um inesperado quinto lugar. O treinador acatou as ordens e, depois de manter o quinto lugar no campeonato, foi à vida dele. E com ele o filho.

Mourinho como adjunto no Barcelona, com Busquets, Luís Enrique e Pep Guardiola. Ao fundo, Julen Lopetegui

Os dois seguiram para o Belenenses, que acabara de descer pela primeira vez ao inferno da II Divisão. O objetivo era a subida, muito naturalmente. Mas nem a equipa atingiu o pretendido nem Zé Mário se afirmou como titular. Teve, ainda assim, uma tarde de glória, quando fez um hat-trick em 45 minutos aos açorianos do Vila Franca do Campo, em jogo da Taça de Portugal que os azuis venceram por… 17-0. Esse jogo, cuja segunda parte fez em vez do internacional Djão, num sábado chuvoso de Novembro de 1982, foi o último em que se ouviu falar de José Mourinho jogador. Andou ainda pelo GD Sesimbra e pelo Comércio e Indústria, nos escalões secundários, mas o futuro dele estava, isso sim, no papel de treinador, que foi assumindo aos poucos, de forma tão subtil que nem parecia ele. Em meados da década de 80, trabalhava como professor de educação física ao mesmo tempo que ia treinado equipas de formação do Vitória FC. Apareceu depois no Estrela da Amadora, como um dos adjuntos de Manuel Fernandes, o ex-capitão do Sporting que acabara em Setúbal como jogador e por lá iniciara a carreira de treinador. Seguiu com o chefe de equipa para a Ovarense e depois para o Sporting, onde ambos foram incluídos na equipa técnica de Bobby Robson. O inglês chegou a Alvalade em 1992 e José Mourinho, à data com 29 anos, juntava às competências específicas na área do futebol mais uma, particularmente importante: podia traduzir o chefe de equipa, porque falava inglês.

José Mourinho
No Barcelona, com Bobby Robson e Ronaldo, venceu a Taça das Taças

Começou ali a relação com Robson, uma espécie de padrinho de Mourinho. Com ele seguiu para o FC Porto e, depois, para o FC Barcelona. Depressa se viu que Mourinho era mais do que o tradutor. Tanto que, quando Robson saiu de Camp Nou, Mourinho ficou com van Gaal. E de lá saiu apenas em 2000, aos 37 anos, depois de uma época sem sucesso que levou à troca do holandês por Lorenzo Serra Ferrer. Mourinho, contudo, estava decidido a sair na mesma. Queria ser treinador principal. E a oportunidade surgiu em Setembro de 2000.

Heynckes já estava por um fio na Luz e uma vitória de aflitos (2-1, com bis de van Hooijdonk, aos 88’ e 89’) contra o Estrela da Amadora motivou a chicotada. Mourinho foi anunciado e quatro dias depois fez a estreia à frente da equipa, perdendo no Bessa com o Boavista, que acabaria por ser campeão. Mourinho não ganhou nenhum dos primeiros três jogos pelo Benfica – à derrota de estreia sucederam-se empates caseiros com o Halmstads e o SC Braga. Pelo meio, Vale e Azevedo perdeu as eleições para Manuel Vilarinho, que já tinha anunciado a predileção por Toni. Daí que em início de Dezembro, após uma vitória (3-0) contra o Sporting, o campeão em título, e já com uma oferta do rival no bolso, Mourinho tenha forçado uma manifestação de confiança que não podia chegar. Essa segunda-feira, 4 de Dezembro de 2000, foi telúrica: no Benfica anunciou-se a substituição de treinador; no Sporting, o anúncio da troca de Augusto Inácio por Mourinho é travado pelos adeptos que entraram na sala de imprensa e forçaram Luís Duque, então presidente da SAD leonina, a assumir, sob compromisso de honra, que não vinha aí o treinador que festejara efusivamente os golos no derby da véspera. Depois de ter sido despedido, Inácio foi readmitido. E Mourinho fez o primeiro período sabático depois de ter começado a carreira.

Não durou muito. A 12 de Abril, o treinador foi um dos meus convidados no camarote que o Record tinha, no Estoril Open, em ténis. Na altura, na minha página de opinião semanal no jornal, eu fazia a análise pormenorizada do processo ofensivo das equipas da Liga, à vez, identificando circuitos preferenciais. Calhou nesse dia publicar uma página sobre a UD Leiria, de Manuel José, e desde logo estranhei o interesse de Mourinho no texto. Falei com ele ao telefone ao fim do dia e ele descaiu-se: ia para a UD Leiria em Julho. Publicámos a notícia no dia seguinte, apressando o comunicado oficial do clube. Manuel José ficou sem chão. “Se ele pensa que isto é a lei da selva e ele é o Tarzan, está muito enganado”, disse o treinador, que mesmo assim ficou à frente da equipa nas seis jornadas que restavam de Liga, deixando-a num excelente quinto lugar final. A bitola era elevada para Mourinho. Mas a 20 de Janeiro de 2002, quando fez o último jogo ao comando dos leirienses – um empate nos Açores com o Santa Clara de Manuel Fernandes – deixou-a em quarto, um ponto à frente do FC Porto e a um do Benfica. Antes disso, entre o Natal e o Ano Novo, esteve para ir para os dois clubes: na Luz queriam-no para substituir Jesualdo Ferreira, que entretanto já avançara para o lugar de Toni; no Dragão pensavam nele para ocupar a posição de Otávio Machado. Mourinho isolou-se. Foi para a neve. Disse não ao Benfica, voltou e assegurou que ia ficar em Leiria até final da época, mas nessa altura já sabia que o seu destino estava nas Antas. Não contava era que fosse tão cedo: a 26 de Janeiro, no dia em que fez 39 anos, estava a estrear-se ao comando dos dragões, vencendo o Marítimo em casa por 2-1.

José Mourinho
Em 2004, com a primeira de duas Champions. Esta ao serviço do FC Porto

O resto da história é cheio de títulos. Em 2002/03 ganhou o “triplete” – campeonato, Taça de Portugal e Taça UEFA – tendo levado para o FC Porto uma série de jogadores da sua UD Leiria (Nuno Valente, Tiago e Derlei), bem como alguns proscritos do Benfica (como Maniche ou Jankauskas). Em 2003/04 ganhou a Liga, a Supertaça e a Liga dos Campeões – foi a última vez que uma equipa não pertencente a uma das cinco grandes Ligas ganhou a prova. Isso deu-lhe a hipótese de assinar pelo Chelsea, onde chegou e se auto-proclamou o “Special One”. Deu provas disso: em 2004/05 deu ao clube de Abramovich o primeiro título de campeão inglês em cinco décadas, desde 1955, juntando-lhe a Taça da Liga. Em 2005/06 repetiu o título na Premier League e juntou-lhe a Supertaça. Em 2006/07 ganhou a Taça de Inglaterra e a Taça da Liga. 

José Mourinho
No Chelsea a festejar a primeira Premier League, com Drogba, Frank Lampard e John Terry

O russo despediu-o em Setembro de 2007, depois de um empate em casa com o Rosenborg, na Liga dos Campeões. O insucesso internacional do projeto – o Chelsea de Mourinho caiu por duas vezes nas meias-finais da Champions – exigia mudanças. Avram Grant levou a equipa à final em 2008, mas Mourinho faria melhor. Em Junho de 2008 foi anunciado como sucessor de Roberto Mancini no Inter Milão. Repetiu o título da Série A na primeira época, na qual ganhou também a Supertaça, e na seguinte foi mais longe: em 2009/10, o Inter de Mourinho ganhou o campeonato, a Taça de Itália e a Liga dos Campeões.

José Mourinho
Em Milão ganhou tudo o que havia a ganhar com o Inter, incluíndo a Champions League

Já não ficou para a conquista do Mundial de clubes, ganho por Rafael Benítez, porque entretanto assinou pelo Real Madrid. Em Madrid, em três anos marcados por uma relação tensa com a direção e pela superioridade do FC Barcelona de Guardiola, Mourinho ganhou uma Liga espanhola (2011/12), uma Taça do Rei (2010/11) e uma Supertaça (2012/13). Não conseguiu ser campeão europeu pela terceira equipa, o que o levou a regressar a Londres e ao Chelsea, onde Abramovich já obtivera o tão desejado troféu internacional. A equipa do Chelsea, no entanto, já não era que Mourinho tivera uma década antes e, no ano do regresso, pela primeira vez desde que chegara ao FC Porto, o português não ganhou títulos. Voltou a ser campeão inglês em 2014/15, juntou-lhe a Taça da Liga, mas não resistiu ao desastre que foi o plantel da época seguinte. Em Dezembro de 2015, depois de perder com o Leicester City de Claudio Ranieri – que seguia para o título inglês –, Mourinho voltou a ser despedido, desta vez com o Chelsea em 16º lugar. Hiddink ainda levou a equipa à 10ª posição, mas esta foi mais uma das raras épocas sem troféus para o treinador português.

José Mourinho
No Real Madrid orientou uma constelação de estrelas e foi campeão em pleno domínio do Barcelona, de Guardiola. Faltou a glória europeia

Mourinho regressou no verão de 2015, aos comandos do Manchester United. Por lá esteve dois anos e meio, tentando preencher os sapatos de Alex Ferguson. No primeiro (2016/17) ganhou a Supertaça, a Taça da Liga e a Liga Europa. No segundo (2017/18) já ficou a zeros e isso levou ao seu despedimento em Dezembro de 2018, após uma derrota com o Liverpool FC. Voltaria onze meses depois, em Novembro de 2019, agora para substituir Mauricio Pochettino à frente do Tottenham. Nos Spurs, um ano depois, ainda não tem títulos para mostrar.

O próprio diz que agora já não é o “Special One”, mas sim o “Experienced One”: na atual Premier League, só Hodgson (73 anos), Allardyce (66), Bielsa (65), Ancelotti (61) e Bruce (60) são mais velhos do que ele. Mas no dia em que faz 58 anos e a dois dias de receber o Liverpool FC, Mourinho quer provar que continua pleno de ambição.  

Texto da autoria de António Tadeia