Quando ouvem falar do derby de Manchester, os mais novos entre vós imaginam uma equipa milionária do City, paga com as fortunas do Abu Dhabi, contra uma formação mais remediada do United, com capital americano que terá custado muito mais a ganhar. Os que andam pela minha idade e entretanto deixaram de ligar ao futebol lembrar-se-ão da super-equipa do United montada e levada ao auge por Alex Ferguson, numa altura em que o City até andava pelos escalões secundários. Mas a rivalidade entre os dois maiores clubes de Manchester, que no sábado (17h30) se defrontam em Old Trafford, vai bastante mais atrás e já foi feita de muitos altos e baixos. É tão grande que nem numa coisa as duas fações conseguem concordar: de que cor é Manchester?

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Os adeptos do City não têm dúvidas: Manchester é azul. Gozam com a falta de atmosfera de Old Trafford, estádio sempre cheio mas de adeptos finos, os chamados “adeptos de sofá”, a maior parte deles vindos de fora da cidade e até do país para ver um jogo, tão global é a marca United. Olha-se para o historial das duas equipas e não há dúvidas de que o do United é mais rico: tem 20 títulos de campeão inglês contra seis, 12 Taças de Inglaterra contra seis, três Taças dos Campeões Europeus, uma Taça das Taças e uma Liga Europa contra uma Taça das Taças. E esse é um dos fatores que leva os seus adeptos a terem a opinião exatamente oposta: Manchester é vermelha. Se há clube inglês com adeptos e seguidores por todo o Mundo, esse clube ainda é o United, o único que consegue rivalizar com marcas globais como o Real Madrid ou o FC Barcelona. Até é por isso que, para menosprezarem os rivais citadinos, os vermelhos tantas vezes dizem que se um dia, numa corrida ao título, forem obrigados a escolher um preferido entre o City e o Liverpool FC, por exemplo, não hesitarão em apoiar a equipa da cidade. Rival a sério, para eles, é o Liverpool FC.

Esse foi, aliás, o início da história. Desde a primeira vez que se encontraram, em 1881, o City ainda se chamava St. Mark’s e o United dava pelo nome de Newton Heath, os dois clubes iam dando passos de mão dada. Aderiram ambos ao mesmo tempo à Liga, em 1892, depois de várias candidaturas recusadas, tendo o Ardwick – novo nome do City – sido colocado na II Divisão e o Newton Heath – ainda se chamava assim o United – entrado diretamente para o escalão principal. O City assumiu o nome atual em 1894 e nisso ganhou ao United, que só passou a chamar-se assim em 1902. Ganhou também na corrida ao primeiro troféu de âmbito nacional: a 23 de Abril de 1904, o Manchester City venceu a 33ª edição da Taça de Inglaterra, batendo na final o Bolton Wanderers por 1-0. O golo foi de Bill Meredith, o “Feiticeiro Galês” e um dos 17 envolvidos num escândalo de pagamentos ilegais do clube a alguns jogadores. Meredith foi depois suspenso e só voltaria à atividade em 1907, com a camisola do… United. Aliás, o United só ganharia a primeira Taça de Inglaterra em 1909, mas já tinha sido entretanto campeão da Liga, em 1908, com uma equipa na qual figuravam vários ex-jogadores do City: além de Meredith lá estavam Bannister, Burgess ou Turnbull, por exemplo. E isso era visto como algo natural.

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Matt Busby em 1934, como jogar do Manchester City

No período entre as duas guerras mundiais, tanto o City como o United passaram alguns anos na II Divisão. Se um subia, o outro descia, o que terá levado os adeptos de futebol na cidade a ganharem o hábito de numa semana irem ver os jogos do City, em Maine Road, e na outra darem um salto a Old Trafford, a seis quilómetros de distância, para verem os jogos do United. Ainda assim, por esse tempo era o City quem fazia figura de grande: os azuis ganharam a Taça de Inglaterra em 1934 e o campeonato em 1937. Uma das estrelas dessa equipa, antes de se mudar para o Liverpool FC, era um tal Matt Busby, que tem hoje uma estátua em Old Trafford, porque como treinador veio a tornar-se numa das figuras mais importantes da história do rival. Foi por essa altura, no pós-guerra, que a rivalidade entre as duas metades futebolísticas de Manchester verdadeiramente arrancou. Busby tornou-se manager do United em 1945 e mudou o clube, conduzindo-o ao sucesso na Taça de Inglaterra em 1948 e no campeonato em 1952, 1956 e 1957. O City começava a perder gás, mas ainda ganhou a Taça em 1956, o que fez de Manchester o epicentro do futebol inglês por esses tempos. E depois aconteceu a tragédia de Munique.

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A estátua de Matt Busby na entrada de Old Trafford, o estádio do Manchester United

Os “Busby Babies”, assim chamados por formarem uma equipa de média de idades muito baixa, começaram a internacionalizar a marca do United em 1957, quando entraram na recém criada Taça dos Campeões Europeus. Um ano antes, na edição inaugural, esse direito tinha sido negado pela Liga ao Chelsea, por exemplo. E logo na segunda época de participação, no regresso a casa após uma vitória sobre o Estrela Vermelha, em Belgrado, o avião da equipa despenhou-se em Munique. Morreram 23 pessoas, entre as quais oito jogadores. Matt Busby sobreviveu para reconstruir a equipa em torno de jovens talentos como Dennis Law ou George Best. E o sucesso voltou a vestir de vermelho: o United ganhou a Taça de Inglaterra em 1963 e o campeonato em 1965 e em 1967. Mais ainda: em 1968, o United tornou-se o primeiro clube inglês a ganhar a Taça dos Campeões Europeus, batendo o Benfica na final de Wembley, por 4-1. E onde andava o City por esta altura? Um ano depois da tragédia de Munique, quando o United foi segundo na Liga, o City evitou a despromoção por um ponto. Em 1963, no entanto, enquanto o United festejava a vitória na Taça de Inglaterra, o City desceu mesmo. E ficaria na II Divisão até 1966. Já não era como nos anos entre as guerras, em que ora descia um, ora descia o outro. Agora não. O United estava lá em cima, enquanto o City amargava num escalão secundário. A vida tornara-se mesmo difícil para a metade azul de Manchester.

A vingança chegou em 1968, com a conquista do título de campeão inglês por parte do City. Ainda por cima com dois pontos de avanço do segundo, que foi o United, muito graças a uma vitória por 3-1 sobre o rival, em Old Trafford. A equipa liderada por Joe Mercer viria ainda a vencer mais uma Taça de Inglaterra e a Taça dos Vencedores das Taças de 1970, ganhando na final ao Górnik Zabrze, da Polónia, por 2-1. Não era um palmarés ao nível do do rival, mas não envergonhava. E mesmo tendo as duas equipas passado em alguma fase da história, pela II Divisão, nenhum derby terá sido tão saboroso para os seguidores de um dos clubes como o que marcou a queda do United aos infernos em 1974. A duas jornadas do fim, para manter alguma esperança na manutenção na I Divisão, o United tinha de bater o City em Old Trafford e esperar que, ao mesmo tempo, o Norwich City ganhasse ao Birmingham City. Aos 80’, com 0-0 no placar, marcou o City. Mais ainda: marcou Law, antigo campeão europeu pelo United, e ainda por cima de calcanhar. O jogo não acabou, que os adeptos da casa não deixaram e invadiram o relvado, mas o resultado manteve-se. E, mesmo que se tenha depois sabido que nem a vitória salvaria os vermelhos, este continua a ser um jogo que os adeptos ferrenhos do City recordam para aborrecer os vizinhos.

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O jogo em que o City “atirou” o United para a descida de divisão

O United regressou à I Divisão logo no ano seguinte, nunca mais foi despromovido e, desde então, foi o City quem andou pelos escalões mais baixos do futebol inglês. Desceu mais duas vezes nos anos 80, antes da criação da Premier League e, numa altura em que Alex Ferguson já tinha sido bem sucedido na tarefa de roubar a hegemonia do futebol inglês ao Liverpool FC para a dar ao United, o City voltou a descer, em 1996. Entre 1976 e 2011, o Manchester City ganhou.. zero. Bola! Além disso chegou a andar na atual II Divisão, o terceiro escalão do futebol inglês – e por vezes com assistências na casa dos 30 mil espectadores. Do outro lado, o Manchester United tornava-se indiscutivelmente no clube inglês mais seguido em todo o Mundo, com 12 títulos de campeão inglês, oito Taças de Inglaterra e mais quatro taças europeias. Tudo cortesia da revolução de Sir Alex Ferguson, o treinador que chegou a Old Trafford em 1986, esteve para ser despedido depois de um início titubeante, mas por lá ficou, como responsável máximo, até ceder as rédeas a David Moyes, em 2013. Ferguson sobreviveu até à compra do clube pela família Glazer, em 2005. Nessa altura, muita gente disse que nada voltaria a ser igual e foi até criado um segundo clube, o United of Manchester, que iria manter a mística. Quinze anos depois, o United of Manchester continua na National League North, o fundo da organização hierárquica do futebol inglês. E se algo mudou no Manchester United foi em 2013, quando, ganho o 20º título de campeão inglês pelo clube, Ferguson abandonou o comando para se tornar uma espécie de figura tutelar. Desde então, o United só ganhou uma Taça de Inglaterra (em 2016), uma Taça da Liga (2017) e uma Liga Europa (2017). As duas últimas com José Mourinho.

Nesse aspeto, correu melhor a venda do capital do City a investidores estrangeiros. O clube está na Premier League desde 2002, mas ganhou novo fôlego em 2008, quando foi comprado pelo sheik Mansour, membro da família real do Abu Dhabi. O investimento naquele que é hoje o City Group – e que inclui outros clubes, de Nova Iorque a Melbourne, com passagem por Yokohama ou Montevideu – foi brutal e está personificado na figura de Pep Guardiola, o treinador que ali chegou em 2016. Antes do catalão, o italiano Roberto Mancini já devolvera ao City o título de campeão inglês, em 2012. O chileno Manuel Pellegrini foi campeão em 2014 e Guardiola em 2018 e 2019. A criação da super-equipa do City, ainda à espera de ter o reconhecimento internacional que uma vitória na Liga dos Campeões poderia dar-lhe, veio dar novo fôlego aos adeptos do clube. Esta semana, quando se preparam para o 183º derby de Manchester (com 76 vitórias do United, 54 do City e 52 empates), quando o City parece na mó de cima, porque seguiu em frente na Liga dos Campeões enquanto o United caiu para a Liga Europa, continua sem resposta a pergunta inicial.

De que cor é Manchester? Mais do que de qualquer resultado, depende muito de quem der a resposta.

Texto da autoria de António Tadeia