As ligações de Portugal à Jugoslávia são parte da história do futebol, ou não tivesse a Taça dos Campeões Europeus começado com um Sporting-Partizan, em Setembro de 1955. O jogo mudou muito desde essa altura – e o Mundo também, a ponto de já não haver Jugoslávia e de em seu lugar terem aparecido várias nações tão diferentes nas suas motivações que só o controlo férreo de Tito mantinha juntas debaixo de uma bandeira, mas ao mesmo tempo tão semelhantes que acabam por ser, todas elas, a corporização do “Zlatan” que existe por trás do “Ibrahimovic”. Sei muito bem que, além de serem a mesma pessoa, Zlatan e Ibrahimovic “são” um futebolista sueco de origem bósnia, mas achei curiosa a referência feita por Diogo Dalot, lateral da seleção portuguesa de sub21, a esta espécie de dupla personalidade do seu colega no Milan. Porque se o Ibrahimovic é sueco, o Zlatan nem sequer é bósnio: é jugoslavo. E tem naquela loucura nem sempre saudável alguns laivos de personagem do “Underground” de Kusturica, obra que pelos seus exageros documenta a balcanidade comum a todos os que saíram daquele caldo de cultura.
A tradição recente manda referir que os balcânicos, todos eles, sejam os croatas, os bósnios ou os sérvios, são nossos fregueses frequentes no que a resultados diz respeito. Não era assim no início. Naquele Sporting-Partizan de 1955 foram os jugoslavos que levaram a melhor. Poucos anos depois, a Jugoslávia eliminou Portugal do Europeu de 1960, com um 5-1 em Belgrado a seguir-se a um 2-1 para nós no Jamor. E enquanto houve Jugoslávia, nunca mais Portugal lhe ganhou, com o percurso a terminar no 3-2 com que a equipa de Susic, Zajec ou Stojkovic se impôs em Lisboa antes do Europeu de 1984, no qual brilhou mais a indisciplina lusitana. Daí para cá, contudo, a realidade virou.
Em termos de seleções, então, porque é um Sérvia-Portugal que se aproxima, vencemos três e empatámos outros três dos seis jogos que fizemos com os sérvios. E a realidade não piora se compararmos com a Croácia – seis vitórias e um empate em sete jogos – ou com a Bósnia-Herzegovina – três vitórias e um empate em quatro jogos. O que é peculiar é que vamos sempre ganhando e reconhecendo o enorme valor das equipas adversárias: “têm tanto talento que se um dia conseguirem ser disciplinados e rigorosos certamente atingirão o topo do futebol europeu”, diz-se com regularidade. Se eles forem mais Ibrahimovic e menos Zlatan, queremos dizer. Mais suecos e menos balcânicos, portanto.
A ligação à Suécia não aparece aqui por acaso, porque foi na Suécia que morreu a ideia da Jugoslávia futebolística. Eu estava lá, que o Europeu de 1992 foi a primeira grande prova que acompanhei no local, como jornalista. Quem não compareceu foi a Jugoslávia, que até tinha ganho o seu grupo de qualificação, mas que à medida que foi perdendo partes do plantel – os não sérvios nem montenegrinos desertaram – em função da guerra acabou por ser forçada pela UEFA a dar a vaga à equipa que subjugara, a Dinamarca. E, mesmo chegando de férias, o que a transformou na versão nortenha da loucura balcânica – a loucura viking não lhe ficará muito atrás –, a Dinamarca ganhou o Europeu. O que já de si vem deixar a dúvida acerca dos limites que teria aquela equipa jugoslava, que era tão forte que o seu desmembramento deu várias seleções de valia. A que nos interessa agora é a da Sérvia, à partida o obstáculo mais complicado na caminhada de Portugal para o Mundial de 2022. Esta será a quarta vez que a equipa nacional se desloca a Belgrado para defrontar a Sérvia – e eu também estive nas três anteriores.
A mais recente aconteceu em Setembro de 2019, na qualificação para o último Europeu. Os sérvios até tinham empatado na Luz (1-1, com um golaço de Danilo a responder a um penalti de Tadic, em Março anterior) e isso, somado ao empate que também tínhamos cedido em casa à Ucrânia e ao percurso sem faltas dos ucranianos desde essa altura, deixava a equipa de Fernando Santos sem grande margem de manobra. O jogo decorreu no enorme Marakana, o estádio que, cerca de um mês antes, o Estrela Vermelha “enriquecera” com a colocação de um tanque de guerra junto à curva Norte, onde costumam ficar os seus adeptos mais radicais. Houve relatos de que o tanque tinha sido usado em Vukovar, na guerra que dizimou a antiga Jugoslávia, mas nem numa altura em que ainda podia ser usado para inflamar adeptos nas bancadas isso intimidou Portugal, que ganhou o jogo por 4-2 e deu um passo decisivo em direção à qualificação. William Carvalho, Gonçalo Guedes, Cristiano Ronaldo e Bernardo Silva marcaram os golos portugueses, nunca deixando verdadeiramente em dúvida qual das duas equipas ia seguir em frente e ameaçar os ucranianos. A Sérvia acabou por ser forçada a jogar o play-off, onde eliminou a Noruega mas acabou por ser afastada pela Escócia, no desempate por penaltis.
Teve menos história a visita anterior de Portugal a Belgrado. O jogo aconteceu em Outubro de 2015, precisamente na última jornada da fase de qualificação para o Europeu de 2016, mas nem os sérvios tinham ainda uma réstia de esperança nem Portugal tinha o apuramento em dúvida, apesar de o ter iniciado com uma derrota caseira contra a Albânia. Daí para a frente, com a entrada em funções de Fernando Santos, a equipa portuguesa ganhou todos os seus jogos, entrando na última jornada com mais seis pontos que a Dinamarca e mais sete do que a Albânia. Com o apuramento no bolso, portanto. Sem grande aparato cénico, o jogo foi marcado para o mais pequeno estádio do Partizan e Santos aproveitou para rodar o plantel: estreou Nélson Semedo, mas chamou também à titularidade jogadores menos habituais, como Veloso, André André, Danny ou Eliseu. Mesmo assim, Portugal ganhou a uma Sérvia em crise (2-1). Nani marcou a abrir, Tosic empatou a meio da segunda parte, e João Moutinho fixou o resultado perto do final.
O mais marcante, para mim, no entanto, foi o primeiro Sérvia-Portugal, o único que a equipa nacional não ganhou. Foi em Março de 2007, ainda no rescaldo do Mundial de 2006, no qual a equipa de Luiz Felipe Scolari tinha atingido as meias-finais, mas em cuja fase final a Sérvia – ainda com o Montenegro – tinha também estado. O grupo de apuramento para o Europeu de 2008 era complicado, tinha Polónia, Finlândia, Sérvia e Bélgica, além de Cazaquistão, Arménia e Azerbaijão, e os portugueses até já tinham complicado as contas, empatando na Finlândia e perdendo na Polónia. O jogo de Belgrado, marcado para o Marakana, não dava espaço para o erro. Tiago até marcou cedo para Portugal, Jankovic empatou ainda antes do intervalo e o resultado já não mexeu, o que até acabou por servir os intentos portugueses, que acabaram a qualificação no segundo lugar, três pontos à frente dos sérvios. Contudo, o mais peculiar nem foi o jogo em si: a jornada incluía uma partida dos sub21, jogada em Novi Sad, na véspera, e também transmitida na RTP, e foi à conta desse jogo que vivi o “momento Zlatan”.
Eu e o Hélder Conduto, que ia como narrador, fizemo-nos aos cerca de 75 quilómetros que separavam as duas cidades, tratámos de tudo o que tinha a ver com ligações e detalhes técnicos, fizemos o relato e o comentário da partida para a RTP, arrumámos tudo e foi no regresso que se deu o acontecimento de que me recordo sempre que me falam em idas à Sérvia. A meio da auto-estrada, rebentou-me uma veia nasal e comecei a jorrar sangue do nariz de forma abundante. Parámos na primeira estação de serviço que nos apareceu, de forma a que eu pudesse tentar estancar a hemorragia e lavar a cara com água fria, e lá fui, com a camisa branca manchada, como se tivesse acabado de sair de um feroz combate corpo-a-corpo. Entrei no bar, a caminho da casa-de-banho, havia cerca de uma dezena de cidadãos presentes. Olharam para mim e nunca me senti tão invisível. Foi como se não estivesse ali, como se entrar por ali gente a jorrar sangue fosse coisa normal do dia-a-dia. Olharam para mim e provavelmente pensaram: “É o Zlatan. Se aparecer o Ibrahimovic pensamos no assunto”.
Texto da autoria de António Tadeia