Se há cidade que pode caraterizar-se pelos derbies, essa cidade é Londres. São seis as equipas da capital britânica a competir na Premier League atualmente, o que desde logo, e só a contar para o campeonato, implica a realização de 30 derbies numa época. Desses, nenhuns são tão aguardados como o derby do norte de Londres, o jogo entre o Tottenham e o Arsenal.
Nada disto tem a ver com o momento ou com a classificação – o desafio entre “Gunners” e “Spurs”, duas equipas cujos estádios estão separados por apenas seis quilómetros, é coisa de análise social. Porque, como acontece sempre em casos de sucesso, cada um destes clubes tem uma identidade muito própria, que suplanta o facto de as suas camisolas serem vestidas por este ou aquele jogador. Na verdade, ainda que tenham sido 15 os jogadores a representar os dois clubes, em mais de 100 anos de história, só oito vestiram as duas camisolas no tão disputado derby do Norte de Londres.
Hoje em dia, sendo a cidade de Londres uma das mais multi-étnicas em todo o Mundo, estas diferenças já não são o que eram. Nos anos 30 do século passado, por exemplo, o Tottenham era o clube da comunidade judia: 30 por cento dos seus adeptos eram judeus. Hoje já não é assim e vários estudos provam que o apoio dos dois clubes já não é etnicamente diferenciado. Ainda assim, as equipas do Tottenham continuam a ser recebidas de forma hostil em diversos estádios, com cânticos anti-semitas, o que reflete essa tradição, bem como o facto de os mais recentes donos do clube, Joe Lewis e Alan Sugar, bem como o atual presidente, Daniel Levy, serem judeus. Os adeptos do Tottenham, aliás, referem-se frequentemente a si próprios como “Yids” – em referência ao idioma yidish –, de forma a banalizar uma origem que muitos transformam em insulto. Os fans do Arsenal referem-se a si mesmos como “Gunners”, palavra que significa “artilheiros” e que vai também buscar a origem do clube, que foi fundado pelos trabalhadores do Arsenal Real e ficava em Woolwich, na altura em Kent, zona agora absorvida pelo sudeste da capital.
A rivalidade entre Tottenham e Arsenal, portanto, não foi imediata. Quando se defrontaram pela primeira vez para a Liga, fez na sexta-feira, dia 4 de Dezembro, 111 anos (em 1909), estes dois clubes estavam longe e nada os movia um contra o outro. Ganhou o Arsenal por 1-0, já que querem saber. Antes, as duas equipas já se tinham defrontado mais vezes. A primeira foi a 19 de Novembro de 1887, num jogo que não acabou porque escureceu quando o Tottenham vencia por 2-1. Na segunda partida, com apenas nove jogadores – os outros não puderam ir – os “Spurs” perderam por 6-2. Spurs? Mas então não eram “Yids”? Sim. A alcunha mais vulgar para os adeptos e jogadores do Tottenham é “Spurs”, uma abreviatura do nome do clube, que é Tottenham Hotspur Football Club. E porquê Hotspur? Foi um momento de liberdade poética dos jovens fundadores do clube, que se inspiraram em Sir Henry Percy, primeiro conde de Northumberland no século XIV e personagem relevante do primeiro ato de Henry IV, uma peça de William Shakespeare. Ora Percy era conhecido como Harry Hotspur. Mas Northumberland? Isso não fica lá para o Norte, perto da fronteira com a Escócia? Fica. Só que o Tottenham foi fundado em Northumberland Park, a zona verde do bairro de Haringey, onde ainda hoje fica o seu estádio.
Aliás, foi muito por questões territoriais que a rivalidade nasceu. De Haringey, os adeptos do Tottenham achavam que dominavam o Norte de Londres. Até que, em 1913, o Arsenal se mudou para Highbury, no bairro de Islington, a seis quilómetros da base do Tottenham. Ora isso era inaceitável. E apesar de o primeiro jogo entre as duas equipas após esta questão ter sido por bons motivos – foi um particular, em 1914, para angariar fundos para o esforço de guerra – depressa os dois clubes encontraram razões mais práticas para se antagonizarem. A primeira surgiu em 1919, quando a Liga decidiu alargar o número de participantes na I Divisão de 20 para 22. O Chelsea, que tinha sido 19º classificado na última edição disputada antes da guerra, a de 1914/15, ficou com uma das vagas suplementares. À outra começaram por se candidatar o Tottenham, 20º colocado da I Divisão, e o Barnsley FC, terceiro classificado da II Divisão. A questão ia ser submetida a votação pelos presidentes da Liga, mas antes disso ainda apareceram mais uma mão cheia de candidaturas. E a mais votada acabou por ser a do Arsenal, que tinha sido apenas quinto na II Divisão mas que foi preferido, alegadamente por ser um “membro mais antigo da Liga”. Os adeptos do Tottenham falaram em suborno, num esquema de favorecimento criado pelo então dono do Arsenal, Henry Norris, a presidentes de outros clubes, mas nada foi alguma vez provado.
A verdade é que desde então os adeptos dos dois clubes não vão muito à bola uns com os outros. “Mais do que uma vez fantasiei que o Arsenal jogava contra o Tottenham na final da Taça; na minha fantasia o meu filho, tão entusiasmado, tenso e infeliz como eu era quando comecei a apoiar o Arsenal, é adepto dos Suprs, e como não conseguimos bilhetes para Wembley estamos a ver o jogo em casa, na televisão. No último minuto, o veterano Kevin Campbell marca o golo vencedor… e eu expludo num frenesi de alegria, ponho-me aos saltos pela sala e a dar socos no ar, a rir, a dar cotoveladas e a despentear a cabeça do meu filho traumatizado. Receio ser capaz disso, e por conseguinte, a atitude mais madura e sensata a fazer é ir marcar uma vasectomia esta tarde”, escreveu Nick Hornby, popular escritor inglês, em “Febre no Estádio”, livro de 1992 destinado a perpetuar as aventuras que viveu desde a infância como adepto fanático do Arsenal. É por isso também que raros são os casos de quem tenha vestido as duas camisolas no derby. O primeiro foi Laurie Brown, um avançado que jogou pelo Arsenal entre 1961 e 1964 e que, nessa altura, se transferiu para o Tottenham por 40 mil libras, o que era muito dinheiro para o futebol daquela altura. A vida de Brown nunca mais foi fácil e o jogador acabou por deixar os Spurs e ir jogar para o Norwich City. Seguiram-se David Jenkins, um jovem promissor que o Arsenal descobriu e o Tottenham quis, em 1968, oferecendo em troca Jimmy Robertson, um jogador já experiente. Nenhum dos dois foi tão feliz do outro lado do derby como tinha sido no clube anterior.
É preciso esclarecer que, por esta altura, o Tottenham era uma força superior no futebol inglês. Na década de 60, os Spurs tinham ganho uma Liga, três Taças de Inglaterra e uma Taça dos Vencedores das Taças, contra zero troféus do Arsenal. Por isso mesmo os Gunners foram tão felizes em 1971. A 3 de Maio, na última jornada da Liga, o Arsenal defrontava o Tottenham em White Hart Lane, sabendo que para ser campeão teria de ganhar ou de empatar a zero – um empate com golos ou uma vitória do Tottenham daria o título ao Leeds United. O jogo foi tenso e fechado até aos 87’, quando Ray Kennedy bateu Pat Jennings para dar a vitória (1-0) aos Gunners. Campeões pela primeira vez desde 1953 e ainda por cima no campo do maior rival. Haverá alegria maior? Desde aí, e mesmo tendo em conta que o resto dos anos 70 ainda favoreceu mais o Tottenham, o Arsenal ganhou mais cinco campeonatos, onze Taças de Inglaterra e uma Taça dos Vencedores das Taças, enquanto o Tottenham não voltou a ser campeão inglês (o último título data de 1961), limitando-se a três Taças de Inglaterra e duas Taças UEFA. A última destas Taças de Inglaterra, em 1991, não ficou tão célebre pela final (2-1 ao Nottingham Forest) como pela meia-final, um 3-1 ao Arsenal conquistado em Wembley a 14 de Abril, ainda hoje celebrizado pelos adeptos do Tottenham como St. Hotspur Day, por ter impedido a conquista da dobradinha ao Arsenal, que nessa época foi campeão inglês. É a resposta à instituição, pelos adeptos do Arsenal, do St. Totteringham’s Day, um “feriado” de data volante que é celebrado anualmente no dia em que, matematicamente, o Tottenham já não tem condições de alcançar o Arsenal na tabela.
As coisas, no entanto, parecem estar a mudar e este ano é o Tottenham quem entra no derby na mó de cima: lidera a Liga a par do Liverpool FC, ambos com 21 pontos, mais oito do que o Arsenal, que segue num modesto 14º lugar. Além disso, tem Harry Kane a um golo de se tornar o maior goleador da história do derby do Norte de Londres: tem dez golos, tantos como Bobby Smith, avançado do Tottenham entre 1955 e 1964, e Adebayor, o último dos jogadores a ter representado os dois clubes no derby. E porque essa lista ficou em suspenso, cá vão os membros mais recentes do clube. Houve Willie Young, um defesa-central que alinhou no Tottenham entre 1975 e 1977, mudando-se então para o Arsenal até 1981 e ganhando uma Taça de Inglaterra. Houve Pat Jennings, histórico guarda-redes que defendeu por 13 anos a baliza do Tottenham (de 1964 a 1977), que depois disso fez mais oito épocas no Arsenal e que, no fim de tudo, ainda regressou ao Tottenham, ainda que apenas tenha jogado pela equipa de reservas, de forma a manter-se ativo antes do Mundial’86, onde jogou pela Irlanda do Norte. Houve o francês William Gallas, que acrescenta aos dois clubes o facto de ter ainda jogado pelo Chelsea – e que em virtude do seu feitio controverso é hoje mal visto pelos fans dos três clubes. Houve o togolês Emmanuel Adebayor, o tal que também tem dez golos no derby, e que jogou no Arsenal entre 2006 e 2009, passando depois pelo Manchester City e pelo Real Madrid antes de assinar pelo Tottenham, em 2011.
E houve Sol Campbell, talvez o exemplo mais paradigmático da forma diferente que adeptos e jogadores vêm a rivalidade. Formado pelo Tottenham, Campbell chegou a capitão de equipa e, em 2001, recusou renovar contrato, numa negociação que teria feito dele o jogador mais bem pago da história do clube. O pior estava para vir: Campbell assinou pelo Arsenal. Passou a ser chamado “Judas” pela metade do lado norte de Londres que puxa pelo Tottenham e foi até nomeado o maior traidor da história do futebol inglês numa lista feita pelo Daily Mail. Mas ganhou duas edições da Premier League – uma delas com dobradinha – com as suas novas cores. E para os jogadores, isso é o que mais conta. As rivalidades, essas ficam para quem está nas bancadas. Ou, na realidade atual, a ver os jogos na TV.
Texto da autoria de António Tadeia